Ainda não cantara o galo nem se pusera a estrela da alva quando Basílio acordou e se levantou cedo naquele dia. Tudo fazia já com dificuldade. A lepra alastrara-lhe pela pele, as feridas nas pernas e nos braços, à força de tanto as coçar, semelhavam flores vermelhas a gotejar sangue. Com dificuldade vestiu a serapilheira que da cabeça até aos pés o cobria como túnica; com maior dificuldade ainda, levou à boca a malga partida onde conservara, seco e escuro, o resto de uma sopa de vários dias.
Basílio, porém, estava contente. Era dia de feira. Era o dia em que os senhores e as senhoras da Alta se dignavam descer dos seus paços, das suas casas de janelas e portas apaineladas, e misturar-se, seguidos por criados e criadas, com o povo que vinha dos burgos à volta da cidade. Muitos o conheciam já e, se lhes pedisse uma esmolinha pelas almas, estava certo de receber, na velha coifa que lhes estendia, umas moedas que viriam matar-lhe uma fome de meses. E talvez o talhante que ficava ao canto do largo lhe desse, como de costume, uma nesga de pão e um naco de chouriço.
Por isso, Basílio estava contente. Mas tão fraco, tão cansado, tão esquecido, que ele próprio se desconhecia. Deu-lhe para lembrar a mulher. Haviam sido caseiros do Mosteiro até que ela morrera, muito nova e muito branca, e se fora a sepultar numa velha igreja do arrabalde. Deu-lhe para lembrar os filhos. Na verdade, já nem se lembrava da cara de cada um: o mais velho morrera pequenino; o mais novo desaparecera em batalha real. E depois viera a doença, a falta de forças, a penúria dos haveres, a miséria…
Mas Basílio parou de recordar. Tudo era confuso, tudo lhe provocava uma sensação de dor, de vómito, de tontura, de medo, de solidão! Era preciso deixar de pensar. Era dia de feira. O que importava era lá chegar, subindo por congostas íngremes e evitando a canzoada, também famélica, que infestava as ruas.
Finalmente, Basílio, levantou-se, agarrou o cajado onde se apoiava há anos, benzeu-se defronte de uma estampa sebenta que lhe haviam dado e que representava o santo do seu nome: São Basílio que – haviam-lhe dito – fora homem de muito saber e muita virtude. Mas as pernas pesaram-lhe e dobraram-se; os olhos tornaram-se de vidro e, pouco a pouco, o corpo de Basílio foi escorregando, escorregando devagar, até cair no chão de terra com os braços em cruz.
Foi assim que Basílio, naquele dia, foi à feira: não à feira dos ilustres senhores e senhoras da alta nem à dos bons mercadores e mercadoras da Calçada, mas à feira eterna onde se encontrou, cara a cara, com os Santos e Santas que sempre invocava e a que recorrera durante toda a vida.
Mas Basílio não morreu. As suas dores, as suas feridas, os seus lamentos de mendigo, as suas súplicas torturadas, os seus sonhos – não poderá um pobre sonhar?!... – Continuaram a fazer parte da feira. E atravessaram os anos, venceram os séculos, galgaram as distâncias, chegaram até nós. E na feira imensa que é mundo de que fazemos parte na feira que se vive todos os dias, na que se goza em todas as festas do ano essas dores, essas feridas, esses lamentos, essas súplicas, esses sonhos são como voz da humanidade. Da humanidade que cumpre o seu destino que sofreu ontem, que sofre hoje, que sofrerá amanhã… sempre embalada, porém, por uma esperança que não morre.
Por isso, a Feira continuará também a existir. Continuará a ser um local privilegiado de venda, de convívio, de jogo, de consumo, de troca e, acima de tudo, de competição. Ali se continuará a comprar o que faz falta e o que é supérfluo. Ali se continuarão a mercadejar mil e um produtos. Em reverência pelo deus-dinheiro, ali continuarão a aparecer os adivinhos, as barracas de comes e bebes, os gaiteiros, as barracas de discos e cassetes, os jograis, as barracas de tiro, os malabaristas, os carrosséis de cavalos e aviões, os saltimbancos, os carros de choque…e pelo meio passarão frades a pedir para o mosteiro, vendedores de pipocas e castanha de caju, romeiros a caminho de Santiago, parezinhos de namorados em juras eternas…
Vindo, porém, de todo um passado de sofrimento humano haverá sempre um Basílio que nos virá recordar que a história se não conduz aos critérios da economia nem à louva minha e incensação dos poderosos – sejam medievais senhores de pendão e caldeira, sejam tecnocráticos e especializados gestores de empresas e “lobbies” da nossa época. Ela é também o cenário onde se agitam os marginalizados, os pobres, os famintos, os miseráveis, os que na feira da vida nada mais querem do que um pouco de pão, de carinho e de esperança.
Entre muitas outras, essa foi uma das lições, talvez a mais tocante, da Feira Medieval de Coimbra a da actuação, sublime e comovente, de Joaquim Basílio, o “mendigo” da feira, que seiscentos anos depois, em plena Sé Velha, no meio de um fausto e de pompa de ocasião, soube reconstituir, perante os nossos olhos deslumbrados, um longo e doloroso percurso da dor humana, despertando em nós a mais fraterna solidariedade por todos os deserdados deste mundo, pelos “basílios” de todos os tempos…
2 comentários:
Também lá irá estar o assalariado?
E o Velho?
Vai lá estar tambem o dançarino do street Football ?
Enviar um comentário